Cena do filme: Casamento de João da Grécia com Maria, na igreja Nossa Senhora dos Remédios em Caxias.
No dia 10 de agosto deste ano fui a praça Gonçalves Dias para as festividades de 194 anos do nascimento de nosso poeta. Lá encontro com o então futuro confrade de Academia de Letras, Edmilson Sanches. Batemos um bom papo sobre o que sabemos de melhor, que é a nossa velha e querida Caxias. Entre os desafios que a cidade precisa enfrentar e o que cada um faria, caso tivesse esse poder, sempre destacamos o que a cidade tem de melhor a oferecer e é negligenciado. Caxias tão rica em história que todos os caxienses (pelo menos acredito) conhecem bem, também está no cinema. Sanches me falou sobre diversos filmes que incluíam Caxias em seu roteiro ou com alguma ligação indireta. Como o primeiro filme em série produzido no Brasil, ‘Contos do Rio de Janeiro’, com roteiro e direção do nosso conterrâneo Coelho Neto.
Passou alguns dias até que no início de setembro voltamos a nos falar por um outro motivo qualquer, mas sempre aquele papo agradável sobre a situação de nossa cidade de como é pouco aproveitada para o turismo. E voltamos novamente a sétima arte. E dessa vez resolvi ir atrás de um dos filmes que ele me contou: ‘A Faca e o Rio’, baseado no livro do maranhense Odylo Costa, filho.
O livro
‘A Faca e o Rio’ é uma novela publicada em 1965 e considerada a sua obra mais notável. Passados na década de 1920, o livro conta a história do velho viúvo João da Grécia (Jofre Soares), casado com a bela jovem Maria (Ana Maria Miranda) de vinte anos de idade. Ao ver seu desejo de ter filhos frustrado, João decide deixar certa fortuna para a mulher desfrutar de uma vida melhor. Ruma para a Amazônia onde obtém sucesso na empreitada. Rico, retorna para o sitio isolado em que deixou sua Maria, porém, João da Grécia é surpreendido com que encontra na sua volta. E ai o ‘código moral’ do homem sertanejo da época, o obriga a entrar em ação, mesmo acreditando na jovem esposa.
A obra é uma epopeia nordestina, destacando o sertanejo e seus fortes costumes regionais. As cenas destacam a o pobreza das localidades, os costumes interioranos, a vida pataca longe dos grandes centros urbanos. O filme foi gravado no Maranhão, Piauí, Pará e Amazonas.
A adaptação da novela para o cinema já tinha sido tentada antes. Em 1966 o diretor português Manoel Oliveira fez um projeto para filmar o livro de Odylo Costa, filho, que na época se encontrava em Portugal a trabalho. Mas para rodar o filme parcialmente no Brasil e ainda contar com os dois maiores atores portugueses na época seria o maior orçamento cinematográfico do cinema português. O projeto não seguiu adiante.
O filme
O filme nasceu de um fato curioso: Em 1968 um amigo de George Sluizer, o romancista português José Rentes de Carvalho estava em uma terrível noite de insônia. Ao pedir para alguém próximo um livro para ler esperando o sono, recebeu ‘A Faca e o Rio’ que sequer teve tempo de dormir. Imediatamente passou a traduzi-lo para o francês. Foi esse cópia que Sluizer leu e teve a ideia de gravar o seu primeiro longa metragem.
O diretor George Sluizer
Mas não seria uma tarefa fácil. Ao começar a levantar recursos para a filmagem, Sluizer encontrou um problema que causou imensa dor de cabeça. A ideia era se aproveitar da lei brasileira que dava uma série de vantagens, como financiamento pela Embrafilme, exibição obrigatória (que já garantiria a estreia), entre outros benefícios. Mas Sluizer era estrangeiro e segundo a norma do INC, um filme só poderia ser considerado nacional se o diretor fosse brasileiro ou então residente no país. Sluizer não se enquadrava em nenhuma das duas opções.
Carlos Drummond de Andrade na coluna do Jornal do Brasil (01/07/1971) denominada ‘O Parnaíba, rio holandês’, cita uma conversa dele com Odylo, em que o escritor lamenta que toda a produção, atores e locais serem brasileiros e apenas pelo diretor ser estrangeiro, o filme não pode ser considerado nacional. “- Como é que eu vou explicar isso ao Sluizer? […] E o decreto está ai para dizer que o filme dele não será brasileiro, será… holandês. Holandês, o rio Parnaíba, cuja margem se passa a história? João da Grécia, holandês? Eu, piauiense, nascido no Maranhão, holandês?” Indagava Odylo.
Nesse caso a velha ‘carteirada’ acabou dando certo. O nome de peso do diretor internacional acabou influenciando na decisão de contornar a lei. Tal decisão causou irritação no setor, pois cerca de vinte filmes nacionais estavam na fila aguardando a oportunidade de benefícios de investimentos. “Espera-se que tal precedente não sirva de pretexto para modificar o decreto. Ele constitui uma proteção legal para evitar que cineastas estrangeiros deformem nossos valores culturais e concorram com os produtores nacionais num mercado de exibição já estrangulado”, alertava um jornal carioca.
Sluizer pretendia reproduzir com máxima perfeição os costumes do sertanejo nordestino. Antes de iniciar as gravações no início de 1971, e para adquirir maior conhecimento do povo e região, o diretor acompanhou e registrou diversos eventos que acabou lançando como três curtas com cerca de 15 minutos cada: ‘O carnaval de São Luís’, onde registrou três dias do carnaval da capital maranhense; ‘A Balsa’, sobre um pescador e sua família ganhando a vida navegando no rio Parnaíba e ‘Zeca – Retrato de Vaqueiro’. Todos lançados em 1973.
O filme tem nomes de peso no cinema nacional e internacional: Seu diretor, o francês radicado na Holanda, George Sluizer (um dos maiores documentaristas holandeses), já trabalhou com diversas estrelas de Hollywood, como Sandra Bullock, Jeff Bridges, Kiefer Sutherland e o jovem River Phoenix, morto por overdose durante as gravações do filme ‘Dark Blood’ de Sluizer. No elenco o consagrado ator brasileiro Jofre Soares e Ana Maria Nobrega Miranda (que se destacou posteriormente como escritora, ganhadora de dois Prêmios Jabuti), Áurea Campos e João Batista de Andrade (Diretor de diversos filmes nacionais). Comandando a câmera Jan de Bont (Produtor do filme ‘Minority Report’; Diretor de filmes como ‘Lara Croft Tomb Raider: The Cradle of Life’ e ‘Velocidade Máxima’; E como Diretor de Fotografia de grandes filmes da década de 1980 e 90 como Instinto Selvagem, Máquina Mortífera 3, Caçada ao Outubro Vermelho e Duro de Matar). Toda essa equipe aqui em Caxias.
As gravações no Maranhão
O Jornal do Maranhão nº 3.796 de 20 de abril de 1969 anunciava em sua coluna: “O livro do conterrâneo Odylo Costa, filho, A Faca e o Rio, vai servir de roteiro para um filme e muitas cenas serão rodadas no Maranhão. Isso todo mundo já sabe. Inclusive Odylo aqui esteve acompanhado de um cineasta holandês, escolhendo os locais da filmagem. Mas em entrevista concedida a Televisão Difusora, Odylo anunciou que está precisando de um navio-gaiola e de um caçador que mate onça a faca. No Gaiola, Odylo viajou quando criança. Mas de caçador que matava onça a unha ele apenas ouviu falar que existia. Não viu nenhum”.
Durante os problemas na liberação da filmagem, parte do equipamento estava parado na Alfandega no Rio de Janeiro aguardando liberação para ser levada a São Luís. O Jornal do Brasil (19 de fevereiro de 1971) diz que “atendendo as ponderações que lhe foram feitas (O Inspetor da Alfandega) liberou o material cinematográfico e o cineasta pode embarcar para o Maranhão onde pretende tomar algumas cenas do carnaval”. Sluizer preferiu filmar o carnaval maranhense pois o do Rio de Janeiro já era bastante conhecido. Essa filmagem foi um dos documentários que ele pretendia penetrar na cultura nordestina e maranhense. Em fevereiro de 1971, o mesmo jornal dizia que Sluizer e Cris Rodrigues (Produtor do filme Macunaíma) estavam em São Luís na produção do filme. Em junho as gravações do longa começaram pelo Maranhão.
“São Luís em festa – Começou domingo passado (20 de junho), em São Luís do Maranhão, a filmagem de A Faca e o Rio, romance de Odylo Costa, filho. Foi uma autentica desta popular, atraindo o acontecimento, o interesse e o entusiasmo de toda a cidade. Virgilio, filho de Odylo e a assistente de produção, teve que ir a Vila de São Francisco, cidadezinha em frente a São Luís, para comprar roupas usadas com que vestir diversos atores. Descobriu-se em São Luís uma preta gorda com grande vocação artística, que encarna admiravelmente um personagem importante na trama de A Faca e Rio. Como a preta é analfabeta, a atriz principal do filme, Ana Maria Miranda, está decorando o papel da sua companheira de trabalho para que ela o aprenda. A euforia na cidade resulta de que este é o primeiro filme rodado em São Luís, tanto mais que se trata da história de um filho ilustre da terra que a ela sempre se manteve fiel pela inteligência, pela alta representatividade e pelo coração” (Jornal Diário de Notícias – Rio de Janeiro, Edº 14.927 de 27/06/1971).
E em 11 de julho o Jornal do Maranhão cita: “Continuam as filmagens em nossa capital do filme A Faca e o Rio…”, onde na figuração estavam algumas figuras da sociedade ludovicense.
No Jornal do Brasil de 02 de setembro: “O Sr. Odilo Costa, filho, como determina o decreto (Decreto Presidencial que permitiu o filme), está assistindo diretamente a filmagem de A Faca e o Rio já tendo viajado para São Mateus no Maranhão, onde foram tomadas algumas cenas. Durante sua permanência em São Mateus, segundo informou, serviu como orientador da direção na filmagem de certos detalhes regionais”.
Incrivelmente não existe registros da passagem da equipe de gravação e dos atores na cidade de Caxias. Seja nos livros de história ou nos jornais locais da época, como o ‘Folha de Caxias’ não faz nenhuma menção ao filme. Como pode uma produção inédita na cidade passar desapercebida? Até produções circenses que se estabeleciam na cidade eram anunciadas nos jornais comunicando a novidade a população. É de se estanhar que homens com uma câmera nas mãos andando pelas ruas de Caxias não tenha chamado atenção em uma cidade sem muitos atrativos. Apenas tenho o relato do Sanches, que, na época, vindo de compras no Mercado Municipal (hoje sede da Prefeitura), parou e presenciou a ação dos atores e da produção na calçada em frente a Delegacia de Polícia, próxima à praça do Panteon, no centro da cidade.
Lançamento
O filme teve pré-estreia no Rio de Janeiro no dia 18 de agosto de 1973 no Metro-Copacabana. A ‘Editora José Olympio’ aproveitou o momento e a estreia, para relançar o livro, onde Odylo Costa, filho, esteve presente em uma grande noite de autógrafos. Foi um evento de gala que contou além do elenco, várias autoridades da política e artistas. A estreia nacional veio no dia 23 do mesmo mês no Rio de Janeiro. Em Brasília estreitou no dia 25 de outubro, onde Odylo também participou de uma noite de autógrafos. Ele estava participando do VIII Encontro Nacional de Escritores e VI Simpósio da Literatura Brasileira e aproveitou o momento para ir ao lançamento.
O filme recebeu diversos prêmios e indicações, inclusive fora do Brasil. “Embora a diferença de língua com o diretor holandês George Sluizer, só senti ter vivido um dos melhores papeis de minha carreira quando vi A Faca e o Rio pronto. O prêmio veio em boa hora”, disse o ator Jofre Soares ao receber o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema em Santos, em 1973.
O filme ‘A Faca e o Rio’ circulou por diversos cinemas nacionais e também aqui no Maranhão. Em Caxias na década de 1970 tínhamos o Cine São Luís, que acabavam passando na maior parte do tempo filmes antigos e repetidos. A cópia exibida aqui em Caxias provavelmente veio de São Luís ou Teresina, onde deveriam estar em exibição.
Cinema no Paraná em 1974
Busca pela internet
Basta um filme estrear nos cinemas que em poucas horas ele já está disponível para download na internet. Seja os chamados blockbusters (arrasa quarteirão) ou os clássicos da sétima arte é possível encontrar com facilidade. Já produções independentes, documentários ou os chamados ‘cults’, é necessário procurar em locais bem específicos pela rede de computadores. Uma produção como ‘A Faca e o Rio’, de um diretor holandês não muito pop baseado em um romance brasileiro, se enquadra nessa categoria. Em meios a tantas opções de sites de downloads de filmes, no Brasil e pelo mundo, não consegui localizar nenhum link disponível para baixar o filme. Edmilson Sanches também me informou que fez várias buscas, inclusive entrando em contato com colecionadores, e a busca foi em vão. Ninguém tinha a cópia.
Até que nas buscas encontrei a matéria do jornal O Globo (23/08/2013) que trazia a notícia sobre uma exposição na UERJ celebrando o centenário de nascimento de Odylo Costa, filho, com mostras de documentos pessoais e uma cópia do filme ‘A Faca e o Rio’, que foi exibida na ocasião. A reportagem diz que a família pretendia doar o acervo a alguma instituição como o museu Casa de Rui Barbosa, no Rio, onde reúne diversos documentos semelhantes de poetas brasileiros. Buscando no site da fundação, descobri que realmente eles receberam o acervo do escritor, incluindo a cópia do filme. O filme foi exibido no museu no dia 14 de dezembro de 2016, quando foi celebrada a chegada do acervo – aniversário de 102 anos de seu nascimento.
Será essa a única cópia disponível no Brasil? Se sim, ela está lá. E quem sabe aguardando para ser exibida novamente aqui em Caxias.
Texto e pesquisa: Eziquio Barros Neto
Ficha técnica:
Título: A faca e o Rio (João En Het Mes / João Und Das Messer)
Material original: 35mm, COR, 95min, 2.605m, 24q, Technicolor, Cinemascope
Diretor: George R. Sluizer
Ano: 1972
Lançamento: 1973
Gênero: Drama
Elenco: Joffre Soares (João) / Ana Maria Miranda (Maria) / Douglas Santos (Zeferino) / João Augusto Azevedo (Juiz) / João Batista (Deodato) / Áurea Souza / Campos (Dona Ana)
Roteiro: Odylo Costa Filho e George R. Sluizer
Direção de fotografia: Jan de Bont
Câmera: Jan de Bont
Música: Heitor Villa-Lobos
Distribuição: Ipanema Filmes
Prêmios: Melhor Ator: Jofre Soares e Melhor Autor/Roteirista: Odylo Costa Filho (Festival de Cinema de Santos, 1973); 1º lugar (Festival de Edimburgo – Escócia); Prêmio Coruja de Ouro de Melhor Ator para Jofre Soares (Instituto Nacional de Cinema, 1973); Menção honrosa (Academia Cinematográfica de Hollywood, 1973); Prêmio Adicional de Qualidade (Instituto Nacional do Cinema, 1974);
Indicado pelo Governo Holandês para representar os Países Baixos no Festival Internacional de Berlin (1972). Foi escolhido para representar o cinema brasileiro na categoria de ‘melhor filme estrangeiro’ no Oscar de 1974, porém não foi indicado.