A reconstrução da casa de Gonçalves Dias

No momento em que a sociedade brasileira está chocada com a destruição do acervo do Museu Nacional no Rio, trago uma crônica que escrevi em 2013 sobre a casa de Gonçalves Dias. A demolição da casa do poeta talvez tenha sido a nossa tragédia maior e que nunca recuperamos. Segue abaixo:

 

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Sobrado em que residiu Gonçalves Dias e família na então Rua do Cisco. Imagem sobreposta a uma foto da rua atualmente. Exposição ‘Caxias Ontem e Hoje’ em exibição no Memorial da Balaiada.

 

“Neste 31 de agosto estive presente na Academia Caxiense de Letras no evento comemorativo de seus 16 anos de fundação. Entre os diversos palestrantes que ali usaram da oratória, ouvi atentamente as palavras proferidas pelo imortal Edimilson Sanches sobre nossa Caxias. E entre algumas propostas voltadas para o seu potencial turístico defendeu com veemência a reconstrução da casa de nosso maior poeta, Antônio Gonçalves Dias.

Atualmente nem o mais atento turista, historiador ou admirador do poeta consegue localizar o local em que o poeta residiu com sua família nos seus primeiros anos de vida sem o auxílio de algum especialista da cultura caxiense ao seu lado. Não existe uma referência sequer nesta rua (que aliás já mudou de nome). Nem uma simples placa informando que ali transitava o poeta das selvas. A casa de sua família, datada pelo menos desde a década de 1820, ficou de pé por cerca de 150 anos até no fim da década de 1970 a derrubaram. Sim, a derrubaram. Não caiu pela ação do tempo não. Derrubaram mesmo. A casa hoje em dia é de arquitetura contemporânea, de materiais de construção modernos, não se aproveitando nenhuma parte estrutural do antigo casarão. Se não tem placa informativa na rua, muito menos uma outra no local da antiga casa.

Na histórica Caxias existiram diversos casarões no período colonial e muitos deles já foram demolidos. Dois restam, que é o edifício Duque de Caxias na praça Gonçalves Dias e o da família Lobo, no início da rua Aarão Reis com a Praça Cândido Mendes. Mas nenhum teria tanta importância para nossa cultura quando a casa da família Dias. Logo essa que deram um fim. Sua feição de arquitetura portuguesa, com porta e três janelas no terreno em que o velho João Manuel Gonçalves Dias mantinha comercio e suas janelas no pavimento superior, em que residiam sua família, não só contam a história do poeta mas também é uma das linhas que contam a nossa imponente cidade que era um verdadeiro polo comercial e intelectual do século XIX no Brasil. Levantar essas paredes novamente vai além de ser uma ode a Gonçalves Dias. É também valorizar a nossa história, arquitetura, urbanismo e cultura.

Aquela janela que a tantos anos resistiu a ação do tempo, o seu ir e vir de fechar dia e noite, sol e chuva, de vento frio ao mormaço, quem sabe foi o local em que o jovem Gonçalves Dias observava e se encantava pelos sabiás que transitavam pelos céus cantando. Quem sabe, ali daquele sobrado, ele admirava aquele pássaro e que anos depois bem longe, já estudante em Portugal, relembraria com saudades de sua terra e escreveria o canto que o imortalizou descrevendo as palmeiras e os pássaros de sua cidade natal. Trechos que de tão significativo para a representatividade local, está inserido no nosso Hino Nacional: “Nosso céu tem mais estrelas / Nossas várzeas têm mais flores / Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida mais amores”. Esse universo espacial, que para ele era Caxias, virou para todos os brasileiros uma referência de seu próprio lar.

 

Recentemente estive na cidade de Ouro Preto-MG e entre tantos exemplos de preservação de seu rico patrimônio, visitei a casa do mártir da Inconfidência Mineira, Joaquim José da Silva Xavier, nosso popular Tiradentes. Lá estava ela, de pé novamente décadas depois de sua destruição.

A casa original foi totalmente demolida no ano de 1792 por ordem da Rainha de Portugal, D. Maria I, após a sua execução. Tiradentes, seus filhos e netos foram declarados infames. Seus bens tomados pela Coroa e o terreno foi salgado para que nada mais nascesse ali.

O Auto de Devassa que consta a sentença de Tiradentes diz o seguinte: “a casa em que vivia em Villa Rica (atual Ouro Preto) será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infâmia deste abominável Réu”.

Por proposta no ano de 1928 a casa foi reconstruída e em 1935 instalada a sede da Associação Comercial e Empresarial de Ouro Preto do que seria seu formato original em memória do homem que se tornou um dos heróis dos ideais republicanos. O herói brasileiro tinha de volta sua residência. O visitante a procura do saber, de beber do conhecimento, tem sua fonte ali instalada no mesmo local em que ele saia todos os dias para seus afazeres cotidianos antes de se tornar um revolucionário. E tornando-se um, ali passou a sonhar por um Brasil livre das amarras das opressões do reino português.

Existem diversas residências de personalidades, poetas ou não, que se transformaram em museu aqui no Brasil e pelo mundo. Quem for a capital da Holanda por exemplo, e não ir na casa em que a família da jovem Anne Frank ficou escondida dos nazistas, não foi a Amsterdã. É possível o visitante conhecer o interior do imóvel que virou museu, a história da jovem e o pequeno espaço em que ficaram enclausurados em que ela escreveu o seu diário.

No Rio de Janeiro a casa que pertenceu a Rui Barbosa foi transformada em museu. Além do guardar o acervo e propagar a obra do imortal baiano, a Casa mantém biblioteca, centro de pesquisa e acervo de vários escritores brasileiros. Um caxiense também teve essa honraria de ter sua residência transformada em um centro cultural lá no Rio. O escritor Coelho Neto teve seus objetos pessoais, imóveis e escritos disponíveis para visitação e pesquisa no bairro das Laranjeiras.

 

Assim também merecemos ter o espaço nosso grande herói reconstruído. Não que isso seja fundamental para manter a figura de Gonçalves Dias. Não, senhores! A sua imagem ou obra são muito maiores e resistentes do que qualquer estrutura física onde nenhum martelo, com o peso da irresponsabilidade e ignorância, conseguiria derrubar. Mas sim recuperar o seu lugar de memória que permanece vivo. E qual outro lugar para venerarmos sua figura que não seja onde estava o seu casarão?

Uma vez esse espaço consolidado como físico, assentaria uma base firme para as novas gerações de caxienses no amor e dedicação a sua própria história.  Ampliaria a busca pela obra do poeta. Demonstraria a vontade e capacidade de gerir o seu acervo patrimonial e consequentemente, ganharíamos potencial turístico. Seria um importante passo para consolidar Caxias como espaço aberto as tradições das letras e poesias.

A reconstrução da casa de Gonçalves Dias talvez preenchesse o vazio que a cidade vem deixando a memória de muitos de seus filhos, principalmente o mais ilustre, que leva o nome da cidade de Caxias a todos os cantos do mundo”.

 

Atualização: Na visita do então recém empossado Bispo da Diocese de Caxias, Dom Sebastião Lima Duarte, a Academia Caxiense de Letras no dia 27 de fevereiro de 2018, estive junto com outros membros da casa o recebendo para conhecer a Academia, seus membros e a nossa atuação no campo cultural da cidade. Assim que Dom Sebastião recebeu as primeiras informações da arquitetura de nosso imóvel e nosso trabalho no meio literário e cultural, ele nos indagou: existe um museu dedicado a Gonçalves Dias na cidade? Nos entreolhamos com certo nervosismo, pois temos ciência de que a cidade falhou em nunca ter tido essa honraria. A cidade que tanto orgulha de se vender aos que aqui chegam de cidade dos poetas, não tem nada edificado (exceto os bustos nas praças) em memória a nossos caxienses ilustres. Lamentos foi o que respondemos a Dom Sebastião de certa forma constrangidos.

 

Texto: Eziquio Barros Neto